I was burned out from exhaustion, buried in the hail
Poisoned in the bushes an’ blown out on the trail
Hunted like a crocodile, ravaged in the corn
Come in, she said
I’ll give ya shelter from the storm
[Bob Dylan, Shelter from the Storm]

Em meados dos anos 70, Bob Dylan escreve sobre uma tempestade de sentimentos e problemas, entre eles sentir-se “burned out from exhaustion” (esgotado por exaustão). Este termo representava um momento cultural muito importante — foi exatamente a partir desta década que o Burnout recebeu legitimidade científica e ampla atenção da população em geral. Hoje em dia, este termo é-nos desconfortavelmente familiar. Nas mais recentes notícias, vemos Portugal como o país da União Europeia em que mais pessoas estão em risco de Burnout. O que é que isto significa? Se por um lado é verdade que as estimativas de prevalência de Burnout variam consideravelmente de acordo com a definição que é aplicada, há também uma outra verdade incontornável — o Burnout tornou-se um dos riscos psicossociais ocupacionais mais importantes na sociedade atual, gerando custos significativos tanto para os indivíduos quanto para as organizações. Mas será que o compreendemos bem? Será que é fácil perceber de que “tempestade” falamos e qual pode ser o nosso “abrigo”?

Na primeira definição proposta por Freudenberger, Burnout surge como um estado de exaustão, fadiga e frustração devido a uma atividade profissional que não produz as expetativas esperadas. Assim, já nesta primeira definição, o desfasamento entre expetativa vs. resultado surge como o precursor da exaustão/fadiga/frustração caraterística do Burnout. Anos mais tarde, Maslach e Jackson reformularam o conceito e incluíram dimensões interpessoais na definição desta síndrome. Burnout é então definido como uma síndrome psicológica caraterizada por esgotamento/exaustão emocional, despersonalização e uma redução da realização pessoal. A partir deste momento fica claro que esta síndrome vai muito além da fadiga/esgotamento que comumente associamos ao Burnout. Sabe-se que do ponto de vista psicológico, esta síndrome causa prejuízos a nível cognitivo, emocional e comportamental, que se traduzem em comportamentos negativos face ao trabalho, aos pares, e até mesmo aos utentes/clientes e ao próprio papel profissional.

É importante também percebermos que apesar de a prevalência desta síndrome ter aumentando ao longo do tempo (muito derivado da alteração da natureza e força de trabalho, bem como a mudanças económicas e de segurança laboral), esta parece ter feito parte da condição humana desde cedo. Navegando na nossa história percebemos que já na Grécia Antiga podemos encontrar as raízes do Burnout no conceito de melancolia e na teoria dos 4 humores — referente a um sentimento de tristeza e incapacidade de desfrutar dos prazeres da vida — bem como no conceito de Acedia — uma emoção associada a um estado de apatia ou torpor. O Burnout, assim como o conhecemos hoje em dia, tem ainda paralelo com o conceito de Neurastenia (neuro = cérebro, astenia = fraqueza), que surge 100 anos antes da primeira definição de Burnout.

O Burnout é frequentemente identificado como a doença do século XXI. E porquê? Será esta uma caraterística ou consequência de uma sociedade voltada para o trabalho e produtividade? Estaremos nós a viver para trabalhar e não a trabalhar para viver? O Burnout representa um verdadeiro quebra-cabeças quando refletimos sobre trabalho. Comecemos por explorar o papel do trabalho nas nossas vidas.

De facto, o trabalho ocupa uma parcela muito grande das nossas vidas, organiza o nosso papel social, o contexto em que vivemos e até como nos apresentamos (não é à toa que frequentemente ao apresentarmo-nos a alguém dizemos o nosso nome e o que fazemos). Ao ter um papel tão preponderante nas nossas vidas, é também comumente visto como uma fonte de propósito e sentido. Na mesma linha, vivemos uma cultura em que muito do nosso valor enquanto pessoa está relacionado com quão trabalhadores e competentes nós somos (repare-se que “ele é muito trabalhador” é elogio que frequentemente provoca um sorriso rasgado nos nossos pais e/ou cuidadores)! Colocamos muita expetativa de realização de vida no trabalho e estamos pouco conscientes de que é pouco provável que o trabalho seja a fonte de tal realização e satisfação. Ao refletirmos sobre isto é importante exercitarmos uma atitude não julgadora e não determinística: o trabalho pode ser uma fonte de realização pessoal, de propósito e sentido de vida. Só não tem de o ser.

Motivados por cumprir com as expetativas em relação ao trabalho, desenvolvemos uma relação muito peculiar com o trabalho que nos é atribuído e, frequentemente, vivemos sem saber colocar travões ou estabelecer limites. Num piscar de olhos, a definição de “tempo livre” deixa de existir, e todos os minutos são passíveis de ser ocupados. Quase como uma invasão Napolitana, o trabalho vai se apoderando do nosso território — invade as nossas vidas, e conquista a nossa alma. De mãos dadas com um profundo desgaste, é também muito comum o aparecimento de sentimentos de cobrança, ou culpa: “lutei para conseguir isto, como é que é possível me sentir miserável?; o que é que estou a fazer à minha vida?”. É também nesses momentos que nos perguntamos: “O que está errado em mim?!”. Aqui é importante fazermos uma pausa! Provavelmente nada está errado com a pessoa, mas sim no ambiente e cultura organizacional, e as expetativas sociais/ culturais em relação ao trabalho. É muito importante referir que o Burnout não é um problema pessoal, mas consequência de certas caraterísticas da atividade laboral e da relação que a pessoa desenvolve com o trabalho. É exatamente por isso que a Organização Mundial de Saúde (OMS) inclui esta síndrome na 11ª Revisão da Classificação Internacional Doenças (CID-11) como fenómeno exclusivo do contexto ocupacional. Refletir sobre o papel do trabalho nas nossas vidas permite-nos um melhor entendimento acerca do impacto que determinados fatores organizacionais (ex: sobrecarga de trabalho, trabalho emocional, conflito de papéis, falta de suporte percebido, entre outros) desempenham na origem de quadros tão complicados e comprometedores como o Burnout.

Onde podemos encontrar o nosso abrigo?

Num artigo provocador, dirigido a organizações escrito para Harvard Business Review, Jennifer Moss afirma “Embora todas essas sejam questões organizacionais, ainda prescrevemos o autocuidado como a cura para o Burnout.” Com isto Jennifer Moss não quer dizer que estratégias de autocuidado não são importantes, mas sim reforçar o esforço global que o Burnout reclama.

Sendo uma síndrome que surge no contexto laboral, mudanças organizacionais impõem-se. Essas mudanças passam por atuar ao nível dos fatores de risco já amplamente conhecidos, como por exemplo: promoção de propósito no local de trabalho, implementação de medidas que garantam uma carga de trabalho ajustada, maior flexibilidade laboral, promoção de autonomia e controlo, entre outros. No âmbito das múltiplas medidas a implementar, salientamos a importância da criação de um ambiente de segurança emocional para abordar tópicos de saúde mental. Chamar líderes e empresas a este debate é essencial. Neste debate é também importante falar sobre o papel que a abordagem individualista, competitiva, despersonalizada e desumanizada tem nesta complexa história. Esta abordagem impede-nos de falar abertamente sobre Burnout, bem como de outros problemas de saúde mental. O estigma em falar sobre problemas de saúde mental amordaça-nos, acorrenta-nos a uma realidade muito dura e sentencia-nos a sofremos sozinhos. É por isso crucial compreender que quando falamos sobre a mitigação do Burnout, falamos de um esforço cultural, organizacional e coletivo. Uma mudança focada em oferecer ao outro compaixão, compreensão e respeito.

Falar em mudanças coletivas não nos retira, a cada um de nós individualmente, da equação. Numa postura compassiva e não julgadora, convidamos-te a ouvires as tuas crenças em relação ao trabalho, em relação a performance, e até mesmo em relação a problemas de saúde mental no trabalho… Percebe que ideias estão mais presentes — esta consciência pode ser muito reveladora para ti e irá certamente promover uma atitude diferente para com o outro. É saudável (e aconselhável) guardar uns momentos para olhar para nós — dedicar atenção a que temos sentido e procurar, dentro dos nossos recursos, viver uma vida alinhada com o nosso propósito e valores, mas é realmente necessário que as organizações se dediquem a perceber melhor quais as condições de trabalho que podem estar nas raízes do Burnout.

Encontrar um abrigo para o Burnout exigirá por isso um mudança coletiva, e durante a fase de transição decorrente dessa mudança é importante que cada um de nós assuma uma postura convicta na busca de uma vida mais alinhada com os nossos valores (com aquilo que realmente é importante para nós). Não menos importante iniciar uma caminhada no sentido de uma maior aceitação e compreensão dos nossos limites será uma importante conquista para o respeito pela saúde mental e bem-estar do próprio e de quem nos rodeia.

Saber que não existem soluções rápidas para enfrentar esta síndrome pode ser paralisante. Mas essa realidade vai permanecer mesmo que a tentemos ignorar. A grande mudança começa com passos práticos modestos, trabalhando para uma mudança coletiva. Não há como voltar atrás, e acredito que a mudança pode começar hoje.

Nota final: É importante também reforçar que compreender o que se passa contigo não invalida de todo que procures ajuda para lidar com o que se está a passar. As consequências a longo prazo de episódios de burnout são extremamente significativas, por isso, se for o caso, procura ajuda profissional.

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